domingo, dezembro 02, 2012

Da vida de A. (parte II)



Sabemos como os tratamentos são longos e como o vazio é uma coisa que demora a desaparecer. Por isso A voltou muitas vezes, em algumas delas falou mesmo muito pouco e noutras avançou delirante, contando sonhos nocturnos invariavelmente tristes.
 
M iniciou um novo ciclo de questões sobre as coisas que lhe causavam uma sensação de conforto. A não teve tantas dificuldades como antes: um chá quente, um vinho tinto bom, uma lareira acesa, a visão do mar...M notou que não havia pessoas entre os motivos de conforto e pediu-lhe que as trouxesse. Foi um pouco mais difícil, a mãe não tinha sido especialmente carinhosa, o pai tinha-os deixado muito cedo, a primeira mulher era tão tremendamente volátil que a euforia dela, alternada com momentos de profunda tristeza, o tinham deixado sem vontade de emoção nenhuma. A filha era a única hipótese de conforto, umas mãos pequeninas entrelaçadas nas suas enormes, essa era única imagem de conforto que ele conseguia visualizar. Tinha, contudo, pânico de fracassar na relação com ela, de a afastar com a sua tristeza.
 
Um dia (ah, e podíamos aqui ter a valsinha como pano de fundo) A chegou diferente. Disse que queria voltar aos sonhos, disse que já sabia o que queria. Tanta certeza deixou M assustada e pensou que o melhor para conter aquela emotividade era pedir-lhe que escrevesse. Estendeu-lhe uma folha branca retirada do papel da impressora e uma caneta. Ele perguntou se não tinha antes um marcador porque queria escrever com mais força. Ela tinha um marcador azul e estendeu-lhe. Ele ficou muito tempo a desenhar as letras, ambos calados. Depois estendeu-lhe o papel, nele podia ler-se:
 
Eu quero uma mulher que me ame.
Uma mulher que me ame muito.
Uma mulher que eu possa amar também muito.
 
M leu o papel silenciosamente e sentiu uma cortina de água inconveniente a toldar-lhe os olhos e depois disso sentiu um soluço na garganta. Não sabe quanto tempo chorou enquanto A deitado no sofá nada dizia, embora não pudesse deixar de a ouvir. Depois levantou-se, tirou-lhe o papel que ela ainda segurava nas mãos e disse-lhe: estou curado, não estou? E antes que ela pudesse responder, abriu a porta e saiu.
 
(fim)
 
~CC~
 
 

1 comentário:

via disse...

é um desejo legítimo e inadiável. gostei.