sexta-feira, novembro 30, 2012

Da vida de A. (parte I)



M. era uma das poucas mulheres que no âmbito da sua prática clínica usava o velhinho sofá e se sentava na posição de Freud, sem confrontar o seu paciente com o seu olhar. Roger talvez não gostasse, em muita coisa ela era mais rogeriana do que freudiana, mas considerava que a posição semi deitada do corpo, permitia que a personalidade pudesse flutuar melhor entre o seu passado, presente e futuro. Quando lhes dizia que era preciso ir praticando o desmame dos antidepressivos até ao limite dos que lhes parecia suportável, assumia, contudo, que ao paciente cabia traçar o seu rumo, escolhendo as suas dependências, sem que elas os tolhessem em lucidez e capacidade de acção. De facto a maior parte deles quando chegavam pareciam apenas nados vivos e não pessoas, de tal modo a tristeza estava afogada em caldos postiços de medicamentos.
 
A. era apenas mais um desses homens sem vontade nenhuma de viver e sem coragem para morrer.
 
Ela tinha feito milhares de vezes o mesmo exercício com ele: diga-me coisas que quer, coisas que quer da vida. Depois tinha-lhe dado o caderninho de capa preta: leve, aponte o que se lembrar, se surgir alguma coisa durante o dia, escreva. O silêncio e a página em branco representavam o vazio que A sentia, um imenso buraco negro que o absorvia. Meses, andaram meses nisto.
 
Depois de ter perdido o medo de ser pateta, A. começou a escrever coisas que pareciam um gozo à terapeuta. Apetece-me gelado de morango. Gostava que hoje estivesse calor. Queria que a minha fiha tivesse boas notas na escola. A trivialidade dos desejos era porém um considerável avanço face ao estado depressivo. A determinada altura, porém, cansado de enumerar pratos mais ou menos agradavéis ao paladar e estados de tempo aprazíveis, A. desviou completamente o roteiro dos seus desejos. Começou a efabular: gostava de ter nascido bicho, gostava de poder voar, gostava de desaparecer dos sítios com um estalo dos dedos, gostava de viver numa tribo. A fantasia era um considerável avanço face ao vazio e à enumeração trivial mas dificilmente podia ajudar A a sentir-se melhor e a reconstruir a sua vida.
 
Por uns tempos M. decidiu parar com aquele exercício, precisava de reconstruir a estratégia para avançar claramente para trazer sonho à realidade daquele homem, sem contudo deixá-lo avançar para a efabulação improdutiva.

(continua)
 
~CC~
 
 

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