Os sinos da Igreja tocam na praia, e em vez de se ouvir o coro, ouvem-se os gritos das crianças nas ondas. Saíram cedo porque o trânsito de Domingo a caminho do mar, é uma epopeia de paciência, um oásis da modernidade duvidosa, é a alegria ao alcance posssível de todos e também o seu contrário, um simulacro da igualdade.
Famílias inteiras em torno de um ou dois chapéus de sol, eles vão ficando por ali, estando como se não estivessem, a maior parte das vezes em pé olhando o mar, preferencialmente agrupados em pares masculinos. Elas controlam tudo, as sandes, os yougurtes, os sumos, elas dividem a comida, colocam o creme, contam o número de banhos dos meninos. A praia é ainda o prolongamento doméstico na reprodução dos papéis.
Excepção feita ao menino e à menina, cada um na sua enorme bóia preta, as bóias parecem as antigas câmaras de ar que os meninos pobres levavam à praia. Os meninos estão lado a lado, desafiam-se nos mergulhos de frente e costas, no equilíbrio em pé e de joelhos, no avançar um pouco mais no mar. O menino e a menina, dez anos, esses têm um outro Domingo só deles. E não esquecerão. Tento fechar os olhos e imaginá-los daqui a vinte anos, e desejo que não se pareçam com nada do que vemos. Fecho os olhos e penso que serão dois flamingos, roçando com o bico as penas um do outro numa carícia leve e intensa.
Não sei se fui à praia ou se tudo isto se passou no largo da Igreja.
~CC~
3 comentários:
Vim aqui ter por mero acaso, à procura de um blogue que se chamou ardósia, que deixou de existir, e onde havia uma banda desenhada assente sobre o conto "Coração Revelador" (ou "Delator", de Edgar Allan Poe.
Parei por momentos, e li o "post" a descrever uma cena tradicional de praia, com uma ligeiramente irónica observação, muito condizente com uma determinada faixa etária, sobre o comportamento dos homens e das mulheres, cada um nas suas funções convencionais.
Emocionei-me um pouco com a recordação das boias feitas de câmaras de ar dos pneus, imagem que já devia estar depoistada no fundo da minha memória.
Felicito o bloguista pelo texto.
Geraldes Lino
http://divulgandobd.blogspot.com
Geraldes, muito obrigada! Com estes riscos só se fazem desenhos com letras:)
(ainda assim, vamos sempre em busca de retratos)
(e agradeço também o preciosismo, é bom ter leitores atentos...)
~CC~
eu não fui à praia...
nem consegui ouvir os sinos de domingo, mas gostei de te ler.
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