sábado, outubro 01, 2011

As marcas da areia preta (IV)

Falei-vos de mim e do meu destino certo.


Falo-vos agora de M, que mal fez 16 anos. Conheci-o na praia de Porto Pim. Não estudava, tinha deixado a escola. Trabalhava às vezes, em coisas incertas. Pequenas coisas incertas. Levava-nos ao vulcão dos capelinhos, guiava-nos pelas ruas da cidade, sabia de caminhos pelo meio das hortênsias e das vacas, atravessava connosco os canais para o Pico e para a Terceira, e sobretudo tinha tempo. Ele vendia o seu tempo, a sua enorme candura, a paixão pelas suas ilhas, um amor tão estranho num jovem da sua idade.


Quando nos conhecia melhor, levava-nos a casa da família. E a mãe fritava filetes de Veja embrulhados em farinha de milho, que acompanhávamos com o vinho do Pico, e terminavámos com um bolo de ananás. Dizia: o meu filho às vezes traz visitas, turistas. No fim da refeição não aceitava dinheiro como pagamento, dizia simplesmente que essas actividades eram com o filho, ele é que tratava dos negócios. Conheci assim uma actividade turística que escapava a todas as catalogações possíveis. É certo que lhe paguei algumas vezes, como se faz a qualquer guia turístico no mundo árabe ou em certos lugares de África. Nunca foi capaz de estabelecer um preço, e dizia que só aceitava o que as pessoas quisessem dar. Nunca fui capaz de calcular se isso aumentava ou não os seus lucros, nem de perceber se ganhava o suficiente para viver. A princípio sentia-me mal, como se fosse uma mulher apanhada a contratar um serviço de acompanhantes masculinos, ainda por cima um adolescente. Depois fui-me esquecendo de tudo, como se despisse a pele dos meus próprios preconceitos.


~CC~



1 comentário:

Margarida Belchior disse...

Credo!!! ... e como os nossos preconceitos nos "pesam"!!

Bjs e bom resto de fds