terça-feira, junho 08, 2010

Manhã

Nunca pensei que manhã tão cedo, mal abrem as portas, já o supermercado se enchesse de gente. Acordam cedo os velhos, os drogados, as mulheres sós e tristes. Levam muito tempo nas prateleiras, olham, mexem, e tornam a poisar as coisas. Escolhem uma, duas, três coisas, e poucos deles levam mais do que isso. Pão, quase todos levam pão, e também bolos baratos. Este desfile de gente pobre e triste na avenida mais bonita desta cidade devia ser filmada, mostrada, enfiada olhos dentro de todos os que não querem ou não podem ver.

Mas não é ainda o suficiente da minha dose diária de dor. Mais à frente vejo-a. É uma rapariga bonita e isso é a primeira coisa que me faz reparar nela, só depois vejo quem é. Foi minha aluna, foi uma das minhas melhores alunas, ao contrário de tantas outras ela escrevia bem, e gostava de pensar. Lembro-me que uma vez abandonou um estágio num centro de dia para idosos porque não gostava de ver os idosos tratados como crianças: davam-lhes figuras para pintar! Gosto de pessoas que são capazes de se revoltar, de dizer não. Reparo no cuidado e profissionalismo como tira as etiquetas dos preços e as substitui, é ainda a mesma pessoa nesse cuidado. Resta-me pensar que talvez este lugar seja ponte, passagem para outra coisa que ela deseje, e sei deseja por causa dos seus olhos baços, enfiados no chão. Apetecia-me dizer-lhe que aquilo que faz nada tem de vergonhoso, mas creio que me vê e desvia o olhar.

Mais adiante cruzo-me com o cartaz do festival de cinema* e a dor atenua-se perante tanta resistência, tanta capacidade para levar por diante uma ideia, um projecto.

Há muito que o sabor amargo-doce se tornou o modo de bater oscilante do meu coração.


~CC~

*http://www.festroia.pt/

Sem comentários: