quarta-feira, maio 19, 2010

Fronteira

Será talvez por causa da consciência clara e gritante da sua velhice, como se ela de repente tombasse tragicamente nas nossas vidas. Como se ela nao tivesse acontecido devagar, a passar por nós a cada ano, os comprimidos sempre a aumentar nas caixas metálicas, e elas a diminuirem, sem poderem já comportar as novas doses. É verdade que estava a acontecer, mas também outras coisas nos aconteciam, coisas belas e coisas tristes que nos deixavam sempre um espaço menor, cada vez menor para os nossos velhos, os nossos pais velhos. Ainda assim, comecei a gostar cada vez mais de os ouvir, de demorar os almoços de fim de semana, de me deixar estar ali na facilidade do silêncio, não me custa ouvir.

E agora, a todo o momento recupero as imagens da menina que eu fui, e deles mais novos, mais sorridentes, ambos muito belos, ela muito loira e clara, ele muito moreno. E de todos os outros meninos da minha infância.

As meninas pretas com os seus cabelos muito arranjados em trancinhas variadas e as batas muito brancas, os olhos cheios de luz, as mangas sumarentas que comíamos depois da escola. Iguais eu e elas, e no entanto quando o meu pai chegava elas desapareciam todas como por magia, não podiam estar na casa da menina branca. Era a solidão.

Depois outro continente, os meninos das ruas pobres de Olhão, meio descalços, despenteados, cheios de piolhos, falando a mesma língua que eu e eu sem os perceber. E mesmo quando se riam das asneiras que diziam, mesmo quando se ofendiam, eu não os podia entender. Era a solidão.

Como custou romper essa fronteira entre mim e todos os meninos da minha infância, pertencer a alguma coisa, a alguém.
~CC~

2 comentários:

deep disse...

Todos, de alguma forma, estamos sós - sempre o senti assim. Por mais que amemos, por mais que nos amem...

São tão bonitos os teus textos, ainda que traduzam essa solidão.

Um abraço. :)

CCF disse...

Tens razão sim, mas uns serão mais que outros, depende também do seu modo de ser. E agradeço muito o elogio quanto aos textos, é bom quando nos entendem e nos sentem.
Abraço
~CC~