terça-feira, julho 07, 2009

O tempo

A filha levou-a por arrasto, zangando-se com ela: mãe, não pode passar tanto tempo sem fazer as sobrancelhas! E ela lá foi dizendo que aos 65 anos isso importa já tão pouco, muito menos quando se mora numa aldeia e só se vê dias a fio o marido, já tão ou mais velho que ela. E é assim que se chega a velho, com esse cansaço interior de quem já não quer saber do estado do corpo, deixando crescer o cabelo, as sobrancelhas, as unhas, numa espécie de desconcerto que talvez não seja mais do que paz interior ou desencontro com as exigências do mundo.

Tive uma avó assim, enfiada dias a fio numa bata, com o cabelo despenteado e uma dentadura que raramente usava, abandonada para o mundo por uma solidão só dela. Não podia amá-la assim daquele modo como criança que era, envergonhava-me dela. E tenho uma mãe inteiramente diferente da mãe que foi a dela, aos 80 ela arranja-se mais do que eu alguma vez me arranjei, faz ainda a sua própria roupa por achar que nada lhe fica melhor do que o que sai das suas mãos. Nunca sai de casa sem pintar os lábios.

E olho às vezes o meu corpo a envelhecer, a pele perdendo o brilho, os músculos a perder a força, certas partes que parecem inevitavelmente mais redondas. Hesito. Por um lado é verdade que sem recorrer a operações estéticas apetecia-me aqui e ali estancar aquele processo de mudança, como se a sedução residisse verdadeiramente no número de rugas, nas partes flácidas, na firmeza do peito, no volume das ancas e todos os discursos que o negam não fossem mais do que engano. Por outro, sinto que poderei ao envelhecer concentrar-me no essencial, deixando o corpo entregar-se ao seu destino e que toda a sedução será já uma outra coisa, outro modo de ser, sinto que finalmente poderei estar em paz e gostar de mim como nunca gostei. Escreve-se muito sobre o amor, pouco sobre o modo como muda a forma como amamos e o que nos atrai no outro à medida que envelhecemos.

Lembro-me da Marguerite Duras que foi uma mulher bonita e que depois abraçou com paixão a velhice, era volumosa, cheia de rugas e usava uns óculos muito grossos. E ainda assim eu achava-a apaixonante, mas ela tinha o dom de ser rara. Vejo-me entre a minha avó abandonada ao esvair do tempo e a minha mãe lutando sempre contra o que o tempo roubou. Não me revejo em nenhuma delas.
~CC~

4 comentários:

Gregório Salvaterra disse...

Ai, coisa linda!
Bj
*jj*

claudiafiel disse...

Eu vou ser daquelas de cabelo grisalho e cabelo curto. Gostava de ser assim. Há uma altura em que nos sentimos estranhas com o envelhecimento e tentamos resistir a essa mudança. Mas depois de o aceitarmos talvez sejamos muito mais nós mesmas, mais alma que corpo. Também não me revejo em nenhuma delas.
Apenas quero acrescentar, que cuidei muitas vezes com compaixão da mãe da nossa mãe. E lembro-me bem desses dias, em que a pentiei, em que lhe cortei as unhas, e eu era tão mas tão nova que nunca pensei nesse abandono dela por ela mesma.
Bjs

Nenúfar Cor-de-Rosa disse...

Um pouco de vaidade não faz mal a ninguém, o bom senso pode ser a palavra de ordem...a minha mãe é muito arranjadinha e bem mais cuidadosa que eu no aspecto exterior, conheço-a assim, e gosto e acho bem. Se contudo, outra qualquer mãe fosse que não se arranjasse tão cuidadosamente, se dela emanasse aquele briolhosinho interior, acharia tão bela quanto esta :-))!

Se te apetecer passa pelo meu cantinho que tens lá uma prenda. Girafa transformada em nenúfar.

Anónimo disse...

É difícil envelhecer! Agora percebo algumas queixas da minha avó...
Aos 50 anos começa-se a perceber o que quer dizer «o corpo já não acompanha a cabeça» . Por isso uns desistem e tornam-se «feios», outros resistem completamente e lançam mão de tudo para não o ficarem ( e por vezes ainda ficam pior) e a maioria vai fazendo o que pode e o que lhe parece tolerável...
Mas o segredo parece-me estar na magica da harmonia: mesmo que o corpo não acompanhe a «cabeça» ( e que ela se mantenha boa), a mente deve ser tolerante para com ele!
Eb