Há duas novas inscrições próximo da zona urbana de Setúbal onde moro. A primeira insulta os ciganos, a segunda tem a marca dos acontecimentos recentes. Detenho-me na segunda: Bela Vista em todo o lado, tocam num, tocam em todos. E é isto que é diferente em relação ao que já conhecemos, é a raiva e o descontentamento a avançarem pela cidade. E a necessidade de afirmar uma identidade de bairro, uma identidade em tom de ameaça.
Durante dois anos, através de um programa de voluntariado, integrei estudantes do ensino superior nas instituições de crianças e de jovens do bairro. Alguns nunca tinham estado num bairro com aquelas características, nem com pessoas cuja origem étnica ou de nacionalidade (quase sempre dos pais, quando não de avós) ainda marca os quotidianos, uma pertença cultural completamente transformada é certo, mais ainda assim presente. Para além do abanão interior que muitos deles tiveram pelo contacto com uma zona assim excluída e auto-excluída, não houve registo de nenhuma agressão ou roubo pessoal e houve histórias de pequenos sucessos, pequenos porque são assim em relação ao que sonhámos no início.
Houve medo sim, eu própria que saí de lá às vezes já noite cerrada o tive, mas é preciso dar a volta a esse medo, sem nos esquecermos dele. E não esqueço aquele dia em que deixei o carro aberto com uma mala e um computador dentro da bagageira e nada aconteceu. E lembro o lançamento do jornal "Vozes do Bairro" feito na minha escola e as reservas dos monitores em levarem até lá as crianças e jovens, mas correu tudo bem, mesmo muito bem. Estou convencida que não há mudança sem pontes com o exterior, sem circulação das pessoas do bairro para fora e dos de fora para dentro.
Houve medo sim, eu própria que saí de lá às vezes já noite cerrada o tive, mas é preciso dar a volta a esse medo, sem nos esquecermos dele. E não esqueço aquele dia em que deixei o carro aberto com uma mala e um computador dentro da bagageira e nada aconteceu. E lembro o lançamento do jornal "Vozes do Bairro" feito na minha escola e as reservas dos monitores em levarem até lá as crianças e jovens, mas correu tudo bem, mesmo muito bem. Estou convencida que não há mudança sem pontes com o exterior, sem circulação das pessoas do bairro para fora e dos de fora para dentro.
Durante esses dois anos houve sim assaltos constantes às instalações das instituições do bairro, algumas delas nascidas da vontade dos próprios habitantes e isso torna o bairro especialmente duro. Lembro-me de uma animadora que lá trabalhou mais de dez anos, ela considerava que aquele grupo com quem tentava partilhar a ideia de que se pode sair da miséria e construir uma vida diferente, estava a salvo. Até um fim de semana em que eles se dosorientaram e assaltaram uma bomba de gasolina. Ela nem queria acreditar que eram os jovens dela! A desorientação foi tanta que ela não aguentou e teve que sair do bairro, lavada em lágrimas interiores. Parece que tudo está preso com fios muito, muito frágeis. Parece que tudo que se constrói, a qualquer momento pode derrocar. Um miúdo frequenta uma instituição, parece amigo dos monitores, lancha lá, usa os computadores...mas um dia descobre-se que foi ele que forçou numa noite a porta e levou todos os computadores. É difícil perceber, mas é assim. Os alicerces interiores dos miúdos podem a qualquer momento ceder, é muita a pressão do vento.
Ao contrário de outros bairros sociais que deram à volta ao seu estigma, a Bela Vista nunca o conseguiu. E a maior parte das instituições cívicas do bairro, nomeadamente a polícia, vivem lá entricheiradas, não construíram laços com a população como já aconteceu em bairros semelhantes. Nunca vi policiamento a pé no bairro, por vezes passava um carro ou outro, mas sempre com os polícias lá dentro. E parece que já ninguém sabe bem o que fazer, pois já foi muito o dinheiro gasto em projectos e mais projectos.
A forma como este episódio é tratado, isto é, como um litígio entre a polícia e os jovens do bairro, em nada ajuda a perceber o que é fundamental, ou seja que os bairros sociais dos anos 60/70, especialmente os que foram criados numa zona periférica da cidade (como Chelas), numa arquitectura desfasada da população, sem pontes com a cidade (enfiaram as escolas lá dentro, impedindo os miúdos de circular para outras zonas da cidade), são autênticos motores de exclusão social. Dirão que são melhores que os antigos bairros de lata, pois são. Mas isso não é olhar para o futuro, mas para o passado, o que é dramático é não só se continuam a construir este tipo de bairros, como não se encontram soluções para os já construídos.
~CC~
7 comentários:
"...está preso com fios muito, muito frágeis. Parece que tudo que se constrói, a qualquer momento pode derrocar..". Quem trabalha nestes meios, tem que insistir, persistir e não desistir...existem muitas derrocadas sim, mas penso que quando há um trabalho contínuo e insistente, uma atenção redobrada, ainda acredito que existam pequenas-grandes conquistas e alegrias. Acho é que devemos sempre pensar que a parte das "derrocadas" está implícita. As borboletas demoram tb algum tempo a transformarem-se..e nem queremos que eles se transformem em borboletas...Beijinhos e boa semana:-)!
Tenho seguido a situação pelos meios de comunicação social e, pelo que tenho percebido, a tensão tem vindo a avolumar-se.
A experiência diz-me que são muito poucos aqueles que aceitam sair do meio em que vivem, apesar dos esforços exteriores nesse sentido. Por vezes, quando pensamos ter havido algum progresso (mesmo que este seja pouco já é uma vitória), vêm sinais de retrocesso que nos tornam cépticos. As acções teriam que ser mais profundas, continuadas e levadas a cabo por equipas multidisciplinares... nos bairros, como nas escolas.
Votos de uma semana mais serena. :)
Bjs
palavras pertinentes, sérias, com o conhecimento de causa que as instrui, CCF. na verdade, problemas que não são novos, experimentados em tantas grandes cidades por esse mundo fora. mas tudo o que corre mal e levanta o fantasma dos nossos medos, é sempre mais interessante para a opinião pública, do que os pequenos passos dados para o desconstruir...
cláudia (sem login)
Palavras de quem conhece... Gostei de ler.
apreciei a leitura lúcida que é feita... as identidades nestes bairros são feitas com outra massa , insistir e resistir parece ser o caminho , mas este tem de passar pela desestigmatização o bairro !
Este è um bairro da cidade, e a cidae tem de perceber isto, e os habitantes da Bela Vista tem de seencontrar nele e na cidade !
______ JRMARTO
Abraço Fraterno
_______ JRMARTo
exactamente:
palavras de quem conhece.
Mas que excelente texto. Conheço bastante bem Setúbal. Gosto muito da cidade que me parece mal aproveitada, gerida com insuficiência, e realmente esquecida. Provavelmente a causa da «derrota» da Bela Vista pode ser enquadrada num esquecimento que a própria cidade de Setubal vive (na escola aprendi que era, em importância, a terceira cidade do país.) O exemplo que dá, em relação à Polícia não patrulhar a pé, parece-me um bom reflexo. Bastaria talvez investigar os investimentos e prgramas que se fizeram em determinados bairros da periferia de Lisboa e compará-los com a Bela Vista. Pode ser que agora acordem. Cumprimentos.
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