segunda-feira, janeiro 05, 2009

Prendas alheias

Tenho uma certa tendência para trocar involuntáriamente de prendas com as pessoas próximas ou apaixonar-me por algumas que não são minhas, faço-as minhas suavemente, numa espécie de roubo consentido. Há dois anos entre uma máquina caseira de fazer pão e uma máquina fotográfica digital, perdi o sentido do que era meu e do que tinha oferecido, neste caso acho que fiquei sem e com as duas coisas, ou seja partilhamos estas prendas no eixo Setúbal Algarve, fazendo-as variar de mãos e de casas.


Este ano perdi completamente o sentido dos CD´s que eram meus e não eram, e só registei o da Cibele porque entre mim e ela há alguma coincidência. Há ainda as prendas que não o são e são as melhores, como foi o caso do programa de espectáculo do dia de Natal, feito por cinco das meninas da família. O programa foi expressivo das competências de cada uma e das suas diferentes apostas, mas conseguiram juntar essas diferenças num curioso número de dança-ginástica-judo-música. Mas não foi tudo, fizeram ainda convites com o respectivo programa, misturando a impressão a computador com a capa dura reciclada dos pacotes de cereais. E houve ainda as prendas japonesas, a merecerem por si só uma prosa.


E agora a paixão, ou seja J.M.G.Clezio, no seu "Caçador de Tesouros". Devo vir atrasada, eu sei. Se calhar já todos descobriram como é deslumbrante esta prosa intensamente poética. Há muito que não tinha vontade de chorar ao ler um livro e, acreditem, não é só a história e as personagens. O que me fascinam são as palavras que trazem paisagens inteiras agarradas e nos levam com elas numa viagem de alma maior do que as que fazemos realmente. Vejo escritas belas e das quais gosto muito, mas eu não queria escrever assim, é por exemplo, o caso do Zafon e do Zimler. Com o Clezio é verdadeiramente um sentimento estranho, é como se eu quisesse dizer assim também, como se este livro fosse o livro que sonhei um dia escrever. Não gosto de transcrever pedaços de livros aqui, mas por ele abrirei uma pequenina excepção.


" É assim que partimos, nesta quarta feira, 31 de Agosto, é assim que deixamos o nosso mundo, o único que possuíamos e agora perdemos, a grande casa da Baixada onde nascemos, a varanda onde Mam nos lia a Sagrada Escritura, a história de Jacob e o anjo, Moisés salvo das águas, e este jardim tão frondoso como o Paraíso, com as árvores da Independência, as goiabeiras e as mangueiras, a ravina do Tamarindeiro inclinado, a grande árvore do bem e do mal, a estrada de estrelas que vai dar ao sítio do céu onde há mais luzes. Partimos, deixamos tudo, e sabemos que nada disto jamais voltará a existir. A nossa viagem é sem regresso, como a morte."


Eu também parti um dia assim de um lugar. E quando lá voltei, já não existia mais. Por isso a vida de quem perdeu os lugares da sua infância parece às vezes feita de metades, ou parece ser mais do que uma.
~CC~

3 comentários:

alexandrecastro disse...

Pela qualidade do seu blogue, decidi partilhar consigo o Pémio Dardos.
Passe pelo meu cantinho.
Um beijo
alexandre

sem-se-ver disse...

parece-me mesmo o post mais adequado para lhe desejar um óptimo ano.

beijo.

Anónimo disse...

Pedaços ou fragmentos que já não se agarram.Todos os dias tento fazer com que essa perda se transforme num agradecimento por me ter levado a outros lugares e seres, e levada pelas dádivas construo o meu novo xadrez, acreditando ingénua, que assim foi melhor.

Mas há dias, em que hiberno como diz o E, para um lugar que não é meu, e dói-me não encontrar ninguém.

Eu ainda não voltei ao primeiro lugar de onde parti, pelo absoluto medo de confirmar, que nem esse já existe.

E depois chegam estas guerras, já tão repetidas que parecem ecos cada vez mais grotescos, e que arrancam múltiplos seres aos seus lugares de eleição ou pertença. T