sexta-feira, novembro 14, 2008

Ponte dos milagres (III)

Eu morava longe da ponte da Mizarela, numa aldeia pequenina perto do mar, branca de cal como são os lugares do sul. Na minha casa, o meu pai tinha deitado fora todos os cristos e rosários que a minha mãe tinha trazido para o casamento. Cá em casa nada de rezas nem mézinhas, essas crendices que só fazem mal ao povo. A nossa luta é contra os patrões, mais nada. Da sua intolerância mas também da sua força tinha nascido eu, herdeira de esperanças que nunca concretizei. Oiço ainda a sua voz forte, os seus olhos sempre duros, a pele tisnada do sol do campo: tens de ir à escola, tens de estudar.

Tudo me interessava mais que a escola, lugar que deixava por qualquer passeio para apanhar azedas, por qualquer pescaria na ribeira, por uma ajuda na queijaria, por uma tarde a ouvir música na filarmónica. A escola aborrecia-me e a vida divertia-me, era uma miúda aluada, distraída, que tinha tanto sono depois do almoço que a minha colega do lado tinha por missão me abanar para eu não deitar a cabeça no tampo da mesa. O meu pai não sabia que fazer de mim, e ocupado com a luta política, não tivera tempo para mais filhos. Era eu a única e ainda por cima tão incapaz que não só desistira cedo da escola e casara mal feitos os vinte, como não lhe dava netos.

Como podia esquecer-me da lengalenga que a velhota me fizera anotar no papel: escreve minha filha, se sabes escrever, que eu não sei. Com o meu 6º ano de escola eu ainda era capaz de deixar no papel aquelas palavras que me acompanhariam daí em diante.

"Eu te baptizo criatura de Deus, pelo poder de Deus, e da Virgem Maria. Se for rapaz, será 'Gervás';se for rapariga, será Senhorinha. Pelo poder de Deus e da Virgem Maria,um Padre-Nosso e uma Avé-Maria. Eu te baptizocriatura de Deus, Pelo poder de Deus, e da Virgem Maria."

Como faria eu para ir ao Minho, junto ao rio Rabagão?

~CC~

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