À memória do meu pai
(que partiu a 31 de Outubro, pela mão das bruxas, espero que bruxas belas e fantásticas)
Eram as letras
dentro dos livros
onde segui pelos teus dedos
até à a montanha mágica, olhai os lírios no campo
toda a colecção Dois mundos
da editora Brasil,
RTP
e o dicionário ilustrado
com todas as palavras desta língua
esta que tão pouco usaríamos para dizer
amor
deixada feita silêncio
tantos e tantos anos
nas bocas cosidas de distância
algum ressentimento
passar o sal, o piri-piri, o açúcar
deixar os olhos lamber as mulheres roliças
fumar muito
mostrar a arma e a farda
amarrotá-la
sonhar-se em religiões alternativas
e como mestre de todas as multidões perdidas
e acabar como todos
pobre, humilde, triste
infinitamente carente e de todos dependente
e ainda assim melhor
mais sereno, mais doce, mais próximo
senhora morte que se aproximava
direi que o meu pai é aquele
que num lugar qualquer lá longe
estará disposto a traçar o horóscopo
a qualquer mulher bonita
preferencialmente loira
sim, era nosso pai
não, não deixou bens nem dinheiro
tinha o IRS feito e era já muito
e o que deixou é ar
a circular dentro do sangue
do nosso
mas ar de qualidade muito boa
apesar dos pulmões falidos
se é que pai é o nome que lhe posso chamar
mas sim deu-me o meu nome
este nome que gosto de dizer por ser belo
e ser a coisa mais minha que tenho
e sim porque a memória
tem lá dentro um colo perdido
que me deu na infância
e outro colo
que fui eu
a dar-lhe agora.
E adeus era na boca dele
uma passagem entre as vidas passadas
e as vidas futuras
pelo que voltará em breve
para piscar o olho
às mulheres loiras, um pouco roliças.
~CC~