domingo, janeiro 19, 2014

As vidas de E mãe e de E filha



Linda ela era, tal como as outras irmãs. O azul dos olhos de uma limpidez absoluta, sem névoa de maldade. Esteve, tal como as irmãs, muito doente. Uma morreu, as outras quatro viveram. As sequelas, contudo, deixaram-lhe no cérebro uma zona obscura, perdeu, entre outras faculdades, a capacidade de distinguir o bem e o mal e de saber o que era ou não conveniente para a sociedade, de perceber o que estava sujo e limpo. Envergonhava os pais honestos e pobres que não sabiam o que lhe fazer e como pretendentes não lhe faltavam, casaram-na cedo. Pariu filhos atrás de filhos, porque o marido, sem lesão cerebral que se lhe conhecesse era analfabeto não só de letras como de afectos. Dizia de si própria que era inválida e por isso tinha que ter um subsídio de subsistência mas não tinha a mínima consciência do que dizia. Não sabia sorrir mas ria com aquele riso aberto e incontinente da loucura. A comunidade que antes tolerava os loucos começou a fechar-se sobre si própria, não a tolerando nem a ela, nem aos filhos infestados de piolhos. Praticamente ninguém da família em franca ascensão social a assumia como membro da mesma e esqueceram-se dela sem grande remorso. 

O dia em que a levaram para o lar talvez tenha sido porventura um dos mais felizes da vida dela pois deixou de ter que se preocupar em ter comida. Viveu lá por quase vinte anos até ao dia de hoje, visitada por pouca gente, ainda assim uma das filhas, uma ou duas das irmãs. É filha de um Portugal miserável que não sabia recuperar os mais frágeis e os desprezava se eram pobres e doentes. Talvez não deva, contudo, falar deste país no passado. A vida de E atravessa este século numa redoma de tristeza absoluta, dada como irrecuperável quando nenhum diagnóstico o mostrou com clareza. Ter um défice mental define uma condição, se lhe associarmos pobreza, é certa a exclusão.

Uma das suas filhas herdou-lhe o nome e sem aparente transmissão genética parte da loucura. Sem que ninguém fizesse nada para a proteger, seguiu mal fez dezoito anos um homem mais velho que a prometeu levar para Espanha e dar-lhe boa vida. Acabou morta num descampado do Norte. Vi a foto dela no correio da manhã e dificilmente a diria a prima com quem ainda brinquei à apanhada.

Não são as vidas que passam nos programas da tarde na TV porque ninguém quer lá uma loura de olhos cor de céu com sol, a rir-se perdidamente, aí desfilam-se as tragédias que se conseguem domesticar, se possível para uma ajuda que reconforte. As vidas de E mãe e de E filha são apenas tragédias anónimas.

~CC~



terça-feira, novembro 12, 2013

A amante perfeita



Uma amante perfeita era como Lola era. Até o nome dela era o de uma amante perfeita. Os encontros eram regulares e sem falhas, mas se ele falhava, ela não dramatizava, ficava apenas para outro dia. Nunca, em todos aqueles anos, falara da sua mulher, muito menos pedira que a deixasse. Deixava-o falar dos filhos e ouvia-o mas não mostrara vontade de os conhecer. Não lhe pedia presença em acontecimentos públicos, tinha muitas amigas com quem ir. Lola odiava o Natal e as festas de aniversário, por isso nunca exigiria a sua presença em tais eventos, normalmente ia viajar. Lola nunca enviava sms, quanto muito respondia aos seus. Em tudo parecia uma mulher de bem com a vida.

Tudo era bom e perfeito, um triângulo sem mácula, pelo menos era o que ele pensava. Até um dia. E não fora ela, fora ele. Tanta perfeição tinha criado nele a dúvida. Seria o único? Ela amava-o? Os seus amigos e colegas diziam que todas as mulheres amam com posse e ciúme, por isso ela não o amava. Ele, na realidade, não lhe fazia falta. Ele era uma espécie de refeição, uma vez degustada, estava terminada. Ele era um adorno, ficava bem com o resto da roupa, mas não era essencial. A dúvida minou-o e enraiveceu-se com a sua própria dúvida. Pensou pedir-lhe justificações, persegui-la, fazer-lhe perguntas. Não tinha, contudo, perdido toda a decência, olhava com pena para a forma como se estava a tornar ridículo. Então explicou-lhe tudo numa única frase de despedida: ele não era homem para uma amante perfeita.

~CC~

segunda-feira, novembro 04, 2013

Palavras malditas



Todos os dias da sua vida ele desejara uma mulher que amasse as palavras. A sua vida fazia-se no interior dos livros, recomendando-os, emprestando-os, trazendo as pessoas até eles. Maria escrevia ainda à mão, como quase ninguém fazia. Durante os seus quarenta anos de vida, ele conhecera mulheres mas não amara. E também não esperava amar. Não lhe interessava particularmente o amor, preferia os retratos dele em matizes tão diversificadas espalhadas no papel dos seus amados escritores.
O primeiro ano do seu namoro fora apenas uma sucessão de olhares longamente trocados, ele sobretudo interessado na mulher que escrevia, ela no homem que sabia de livros.
No segundo ano ela escreveu-lhe as cartas. Tinham sido doze, à moda antiga, uma por uma deixadas em mão na secretária dele, assinadas apenas com o seu primeiro nome. Não eram longas, cerca de meia página. Não eram declarações de amor, eram declinações de sentimentos experimentados ao longo de um mês, as palavras certas, contidas, mas belas. Na última ela terminava dizendo que ele era o homem por quem tinha esperado sempre, um homem que amava as palavras como ela.
Estavam juntos há cerca de sete anos. Anos de total silêncio da palavras escrita. Abriu as 12 cartas que tinha recebido dela. Uma por mês durante um ano. Ela estava ali todos os dias ao seu lado, nenhuma palavras lhe escrevia. Ele sonhava que um dia chegava a casa e ela estava sentada a escrever. Ele ia ao correio e pensava ter uma carta dela. Ele vasculhava a secretária à procura de um bilhete dela. Por vezes suspeitava que esta não era a outra, mas apenas uma sombra dela. Lembrava-se da fonte da quinta do avô que tanto deitara água durante a sua infância e secara um dia sem grande explicação.
Ele via nas mais pequenas coisas do quotidiano que a mulher o amava. Mas as palavras escritas, como elas lhe faltavam. Nada lia dela, nada via dela, apenas os diálogos trazidos pelo quotidiano. Ele esperava um bilhete, nem que dissesse apenas: volto já.
~CC~

domingo, setembro 08, 2013

Lírio roxo





Lília sempre ouvira dizer que o seu nome tinha parentesco com uma flor. Crescendo no meio das vinhas e dos meloais ela não sabia quase nada sobre fragrâncias, apenas se lembrava de enjoar a cada Outono com o cheiro estonteante do mosto. Era apenas mais uma rapariga a crescer num lugar onde a partir dos doze anos os homens começavam a olhar para elas, rindo e comentando entre si. Lília fugia de tudo e encostava-se a um canto do baile para se tornar invisível. Doiam-lhe todas as partes do corpo que estavam a crescer de forma desordenada e incómoda. Como todas as moças que crescem sem ser as mais lindas da rua, o seu sofrimento era proporcional à ignorância que lhe votava o moço mais galante da vila, o mais belo, o melhor dançarino, o mais desejado. 

Lília espreitava-o temerosa de que ele a notasse, encantada pelo brilho daqueles olhos tão tremendamente negros e brilhantes. Ele mudava de parceira em parceira, dançando com todas um bocadinho, a fim de se manter intensamente adorado. Não se lhe conhecia namorada, a todas dizia que era cedo demais e que ainda estava à procura da sua bela. 

Também chegou a vez dela mas ela não quis dançar. Então ele convidou-a para um passeio à luz de uma noite escura, sem lua. E ela foi. Nunca se arrependeu de ter ido mesmo depois dele nunca mais a ter olhado, nunca mais lhe ter dirigido a palavra. O desgosto foi uma coisa calada, chorada para dentro. 

Depois daquela noite em que ela se deixou morrer corroída pelo veneno que tirou da adega do pai, muita coisa se disse. Poucas coisas certas provavelmente. O que chegou como uma certeza até hoje foi que ela saiu para a rua para a morrer, vomitando as entranhas no empedrado. Mas o seu vómito era roxo e não tinha mau cheiro, parecia até exalar um odor a flor. Se calhar esperava uma menina, quem sabe teria brilhantes olhos negros.

~CC~

PS. Homenagem primeira aos jantares da tua terra, junto dos teus pais. Contam-se contos, eu acrescento os pontos :)