Linda ela era, tal como as outras irmãs. O azul dos olhos de uma limpidez absoluta, sem névoa de maldade. Esteve, tal como as irmãs, muito doente. Uma morreu, as outras quatro viveram. As sequelas, contudo, deixaram-lhe no cérebro uma zona obscura, perdeu, entre outras faculdades, a capacidade de distinguir o bem e o mal e de saber o que era ou não conveniente para a sociedade, de perceber o que estava sujo e limpo. Envergonhava os pais honestos e pobres que não sabiam o que lhe fazer e como pretendentes não lhe faltavam, casaram-na cedo. Pariu filhos atrás de filhos, porque o marido, sem lesão cerebral que se lhe conhecesse era analfabeto não só de letras como de afectos. Dizia de si própria que era inválida e por isso tinha que ter um subsídio de subsistência mas não tinha a mínima consciência do que dizia. Não sabia sorrir mas ria com aquele riso aberto e incontinente da loucura. A comunidade que antes tolerava os loucos começou a fechar-se sobre si própria, não a tolerando nem a ela, nem aos filhos infestados de piolhos. Praticamente ninguém da família em franca ascensão social a assumia como membro da mesma e esqueceram-se dela sem grande remorso.
O dia em que a levaram para o lar talvez tenha sido porventura um dos mais felizes da vida dela pois deixou de ter que se preocupar em ter comida. Viveu lá por quase vinte anos até ao dia de hoje, visitada por pouca gente, ainda assim uma das filhas, uma ou duas das irmãs. É filha de um Portugal miserável que não sabia recuperar os mais frágeis e os desprezava se eram pobres e doentes. Talvez não deva, contudo, falar deste país no passado. A vida de E atravessa este século numa redoma de tristeza absoluta, dada como irrecuperável quando nenhum diagnóstico o mostrou com clareza. Ter um défice mental define uma condição, se lhe associarmos pobreza, é certa a exclusão.
Uma das suas filhas herdou-lhe o nome e sem aparente transmissão genética parte da loucura. Sem que ninguém fizesse nada para a proteger, seguiu mal fez dezoito anos um homem mais velho que a prometeu levar para Espanha e dar-lhe boa vida. Acabou morta num descampado do Norte. Vi a foto dela no correio da manhã e dificilmente a diria a prima com quem ainda brinquei à apanhada.
Não são as vidas que passam nos programas da tarde na TV porque ninguém quer lá uma loura de olhos cor de céu com sol, a rir-se perdidamente, aí desfilam-se as tragédias que se conseguem domesticar, se possível para uma ajuda que reconforte. As vidas de E mãe e de E filha são apenas tragédias anónimas.
~CC~